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18.12.05

NOTA SOBRE O ENSINO ARTÍSTICO - Fernando Rebelo






A ESTRADA DESERTA ou SE ELES A DESCOBREM AINDA NOS VÃO COBRAR PORTAGEM... (1)No princípio, até brincávamos...“ És professor de quê?...”“ De OED.”“ Que é isso?...”Nunca a estranheza deixou de ser óbvia. Um professor de uma disciplina chamada abreviadamente OED (Oficina de Expressão Dramática) era tido como uma criatura rara, pelo menos à atmosfera da Escola. Mesmo que esse professor já fizesse parte do quadro de professores da dita Escola. “Isso é teatro?...”“Pois. É isso...”E ficávamos por ali, para não dar mais explicações. Estivemos na Escola por favor, toleraram a nossa presençaParentes pobres. Aqueles que leccionaram OED nas nossas escolas sentiram-se sempre na pele de alguém que era tolerado. Legitimados e, como tal, gozando de moderada aceitação por parte da família. Éramos objecto de um sorriso de condescendência, um “faça favor de entrar” com um sorriso cínico e pouco mais.Com boa vontade e boa fé, os professores da disciplina de OED foram trabalhando à mercê de tudo o que lhes entenderam fazer os poderes instituídos.Para os lados de onde o Alentejo fica mais além, alguém se lembrou de criar a estranha ideia de que uma Licenciatura em Estudos Teatrais conferia o supremo dom a que qualquer comum mortal pudesse vir a exercer uma profissão de docente na disciplina de OED ou de algo que lhe valesse.Esqueceram-se, por acaso, que em Lisboa valem as suas próprias leis, que ora são assim e logo assado... E, diga-se em abono da verdade, calaram-se quando viram (terão mesmo visto?...) que tudo se desmoronava.Estivemos a falar de Educação, de sistema de ensino?Claro que sim.Isto aconteceu em Portugal há cerca de uma dúzia de anos atrás.Fez-se uma Reforma do Sistema Educativo e há uns meses atrás fez-se uma nova reforma sem que a avaliação da anterior Reforma tenha sido feita na totalidade. Gastaram-se dinheiros públicos em investimentos que foram mandados parar sem quaisquer explicações. Que se lixe o dinheiro! O Ensino público não pode nem deve estar subjugado a uma lógica puramente mercantil. Claro que sim.E já agora acrescente-se que, sobretudo, o Ensino público não pode nem deve estar submetido a uma lógica de políticas.É um assunto de Estado, não um assunto de programas partidários.O Ministério da Educação é um organismo cada vez mais anquilosado e obsoleto. Num país com cerca de 11 milhões de almas – metade das quais anda afastada da Escola – aquele organismo governamental tornou-se numa máquina de desresponzabilização. Uma espécie de avestruz. Sempre que surge um problema enterra a cabeça na areia e murmura: “Não me venham pedir responsabilidades...” e, em seguida, retira uma lei ou uma reforma ou novos programas do seu infindável e lustroso seio e ali fica toda a sociedade entretida a ler, a tentar decifrar aquele palavreado em ‘eduquês’ e, enquanto isso, a avestruz lá vai à sua vida, tranquila e satisfeita.Não basta produzir legislação. Importa que as leis tenham em conta as realidades e as prioridades de um país. Um sistema de ensino é pensado – desde a base até ao topo – em função daquilo que se considera prioritário e fundamental em termos de um Estado moderno, avançado e integrado num quadro de Estados chamado União Europeia. O ensino artístico no nosso sistema de ensino nunca existiu. Esta é a verdade. Educação Musical?... Onde? Educação Visual? Que é isso? Estamos há várias décadas com um sistema de ensino que, no papel, é uma coisa e, no terreno, é outra completamente diferente. Ler – Escrever – Contar: esta continua a ser a divina trindade do nosso sistema de ensino. A actividade docente obedece a uma lógica corporativista e é avessa a qualquer mudança. Cumprir programas, preparar para exames – estes são os altos desígnios a que aspiram os nossos docentes do pré-primário ao 12º ano. Não há tempo para mais nada. Expressões? Que raio será isso?Olhem para o horário de um mancebo com 14 anos, no 8º ano de escolaridade. Passa 5 dias por semana na escola, em aulas, cinco manhãs inteiras e duas tardes até às 18.45 horas. Aulas de Português, de Matemática, de Área de Projecto, de Estudo Acompanhado... Horas e horas seguidas. O mancebo, que de parvo não tem nada, já percebeu que há algumas aulas da tanga. É só estar lá, é só uma questão de ir. A Escola, para ele, é um lugar onde se vai para, nos intervalos estar com os amigos, estar numas salas a ‘ter aulas’. O mancebo chegou aos 14 anos de idade e a sua formação estética é nula: ouve a música que todos ouvem e essa é que é boa, foi a museus em visitas de estudo mas nem se lembra do que viu, foi ao teatro com a setôra de Português ver não sei quê, com nem ele sabe quem, foge dos livros a sete pés, jornais lê regularmente um dos três diários desportivos que neste país se publicam, até vai ao cinema ver o que de pior se faz nos Estados Unidos. Ao lado de qualquer outro mancebo europeu da sua idade não se lhe nota qualquer diferença. Exteriormente. É perigoso generalizar, mas o perigo real existe quando nos apercebemos que a generalização é tão vasta. Olhando à nossa volta reparamos que grassa a parolice e parece até que se cultiva de forma deliberada uma forma de ser e de estar cada vez mais ‘pimba’.Há cerca de três décadas atrás os pobres e os chamados ‘remediados’ tentavam elevar-se socialmente pela via do Ensino ou da Cultura. Havia efectivamente uma preocupação por ‘subir na vida’ e era através da Escola que essa ascenção era tentada. Os cursos nocturnos estavam cheios de gente que tinha trabalhado durante o dia, a figura do trabalhador-estudante era real. Desde a alfabetização, ao ciclo preparatório, dos liceus, à Universidade, houve gente que encontrou no sistema de ensino um modo de poder valorizar-se quer pessoal, quer social, quer profissionalmente. A Escola abriu-lhes portas para a Cultura: houve quem descobrisse a Poesia, outros a Música, outros, ainda, as Artes Plásticas, o Teatro. A sua valorização não se traduziu em acesso a bens materiais, passaram a dar atenção a outras coisas; libertaram-se, no sentido mais generoso da palavra.A Escola era vista como o sítio que permitia fazer a diferença. A maior parte desses tornaram-se melhores pessoas, cidadãos mais conscientes da sua cidadania, empenharam-se em causas, humanizaram os sítios em que habitavam, sem pedir nada em troca. É certo que continuaram a não dar importância a aspectos que lhes mereciam a importância que deveriam ter e, logo, começaram a ser olhados de lado. Com desconfiança. Os da Cultura não eram gente muito certa. O parolo se tem pela frente alguém que se expressa numa linguagem parecida com a sua mas com palavras estranhas aos seus ouvidos matarruanos começa logo a coçar-se e a sentir-se pouco à vontade. Olha-se para o gajo e vê-se uma barba descuidada, uma camisa a precisar de reforma, nem gravata, nem nada... Mau, Maria, que o gajo é um falinhas mansas... ´tás aqui, ´tás a levar com a enxada na cornadura... Ó mulher vai lá para dentro que isto é conversa de homens e você veja lá se desampara a loja que eu tenho mais que fazer...A Escola não soube acompanhar o país em que vivia, não percebeu que a democratização não passava pelo desleixo, pelo facilitar. A tampa nunca esteve no sistema educativo, quem lá estava deixou que o mesmo fosse prevertido de forma ignóbil. Era preciso mudar para que tudo ficasse pior ainda, para que os uivos lacinantes em prol do ‘isto d’antes é que era bom...’ fossem cada vez maiores e a Escola Pública chegasse onde chegou.
1975, 1980, 1990...Quê?! Já chegámos ao século vinte e um?!...Pois foi.Aqui no Sudoeste deste velhíssimo continente somamos já umas valentes centúrias de História. Levámos ciclicamente braços aos outros mundos. Escanzelados braços em busca de sustento, levados pela miragem da mudança de vida e desses mundos trouxemos os mesmos braços, mais nutridos, mais tilintantes de pulseiras e relógios, prontos a erguer betão, destros no fumegar dos escapes e hábeis a promover romarias e feiras fartas em foguetório, comezaina e cantorias rascas. O braço chorudo do torna-viagem tornou-se um marco a indicar o caminho: quem não alomba, não anda de Mercedes-Benz. O mote estava dado. Não tens dinheiro e ninguém te respeita, nem te considera, nem ouve o que tens para dizer. Quem não sabe fazer dinheiro, não presta para nada. Quando saí daqui, da terrinha, ia de mão à frente-mão atrás, era um zé-ninguém, um pobretanas que nem o nome sabia assinar. Hoje aqui me tens em cada Agosto: olha a fatiota, o sotaque, o chiar dos pneus, o luzir dos anéis nos dedos. Olha a minha ‘maison’. Dou dinheiro para a nova igreja, para a procissão, dou algum para a Junta de Freguesia. Sou um benfeitor, a bem dizer eu sou o Progresso.A ascenção social centrou-se na capacidade de fazer dinheiro. Aqueles a quem um dia chamaram ‘progressistas’ cansaram-se, compraram ‘jeeps’ e um monte algures no Alentejo. Hoje em dia, debruçam-se, curiosos, sobre a terra, em licenças sabáticas, como avestruzes envergonhadas dessa sua nova condição. De resistentes passaram a desistentes. O país real – o da telenovela e futebol, o do centro comercial e arraial nem se apercebe da sua existência. Não lhes liga pêvas. Está mais preocupado com outras coisas.O país vive, finalmente, a duas velocidades: de um lado, os que estão bem na vida e têm os filhos no ensino privado, pagam e reclamam, assumindo o direito de que o cliente tem sempre razão; do outro, a massa anónima e ressabiada que invade os centros comerciais aos fins de semana, lê as gordas de um dos três diários desportivos nacionais, consome novelas ou ‘filmes de acção’ e anda lixada da vida ‘por causa dos atestados médicos que os sacanas dos profs. metem’. São os utentes do nosso Sistema de Ensino Público. Hão-de constituir-se em associação, depois em Federação e, logo em seguida, serão uma Confederação para que sejam admitidos à mesa das negociações de um conflito que será resolvido quando o bom-senso imperar. O actual Sistema Educativo vive de ‘fait-divers’. É um conflito permanente e insanável, feito da discussão de acções de guerrilha. O Presidente de um Conselho Executivo gasta horas a falar com uma Associação de Pais que se arroga a capacidade de discutir assuntos do foro pedagógico. O Conselho Pedagógico de uma Escola reserva lugares para alunos, pais e funcionários com direito a voto. Discutem-se colocações de professores, coisas corporativas. Contam-se tempos de serviço, habilitações, graduações, acções de formação. Coisas de funcionário cansado que vai riscando no calendário os dias que faltam para ficar em casa a tratar do canário.O cidadão comum, preocupado em garantir a subsistência, alarma-se e incomoda-se quando não encontra sítio onde albergar as crias, passado que foi o período estival. Tem que ir trabalhar, ganhar a vida e nem o infantário, nem o adolescentário lhe mostram sinais de abrir as portas. Fica à espera, recorre a expedientes vários e nem reclama. Tudo se há-de compor. A Escola abriu. Ainda bem. Está tudo a funcionar no melhor dos mundos possíveis. Candidamente entregamos os nossos rebentos nas mãos acolhedoras da Escola. Estuda para o teste. Tens teste amanhã. Vou pôr-te na explicação. Podes passar de ano ‘cortado’ a quantas disciplinas?...O nosso mancebo sorri. Há-de andar na escola até ter, pelo menos, 18 anos. Dela – Escola – não espera grande coisa. Há outros caminhos. Ele sabe que sim. Se alguém lhe disser que a Escola visa, entre outras coisas, contribuir para a sua realização através do pleno desenvolvimento da sua personalidade, da formação do seu carácter e da sua cidadania, dando-lhe uma preparação para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos e que também lhe proporcionará um equilibrado desenvolvimento físico, o nosso mancebo há-de achar que estamos a gozar com ele. Estamos na Europa civilizada. Hoje são vésperas de 2005. Ainda bem que não vivemos no hemisfério Sul. Aqui, estamos com mais de 8 séculos de história no nosso canto do Sudoeste deste velho continente. Tiveste as aulas todas? Tens testes marcados? Sempre vão fazer exames no 9º ano?...No espelho retrovisor do nosso carro assoma uma cara que, sem nos responder, trauteia uma canção que lhe escorre pelos auscultadores do ‘walkman’.
O nosso mancebo hoje, aqui, neste nosso canto do Sudoeste do Velho continente, tem tudo: a net, o telemóvel, fronteiras abertas, liberdade, acesso a bens materiais. Na sua frente ergue-se uma estrada larga, larguíssima, mas deserta... Sem ideias, sem valores, sem referências. Há-de passar por toda a estrada sem que nela deixe a sua marca, sem que lhe ocorra sequer parar por momentos para contemplar a forma bizarra de uma nuvem, um vulto na paisagem, um assobiar mais agudo do vento. O dinheiro que leva nos bolsos há-de gastá-lo em paragens breves para satisfazer necessidades tão básicas como a fome, a sede, o sono ou a vaidade e, ainda, para pagar escrupulosamente todas as portagens que se lhe deparem ao longo do trajecto.
Fernando Rebelo – Out./04
(1) (publicado na revista BICICLETA nº 8 - edição de Mandragora - mandragorarte@netscape.net)

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