
Na proposta do actual Governo para uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo, podia ler-se o seguinte no ponto III da Exposição de Motivos: “A missão fundamental da educação é hoje, mais do que nunca, fornecer a cada pessoa os meios para o desenvolvimento de todo o seu potencial, para o exercício de uma liberdade autónoma, consciente, responsável e criativa. Há, assim, que assegurar uma educação que prossiga conjugada e sequencialmente as finalidades do aprender a ser e a viver juntos, do aprender a estar, do aprender a conhecer, do aprender a fazer, do aprender a pensar e aprofundar autonomamente os saberes e as competências.”Mais à frente, no Capítulo II , Organização do sistema educativo, na Secção II, Educação escolar, Subsecção I Ensino Básico, poder-se-á ler a alínea g) do Artigo 12º, Objectivos do ensino básico: “Promover as actividades manuais e a educação artística, de modo a sensibilizar para as diversas formas de expressão estética e a detectar e estimular aptidões nestes domínios;”. Logo aqui nos assaltam algumas questões: quem e como poderá detectar aptidões nestes domínios entre os alunos que frequentam este ciclo de ensino? O que se entende por «aptidão» em termos da prática teatral? E, assim, parece que voltamos à questão exposta páginas atrás: a da formação inicial de professores.Continuemos a análise do documento. No Artigo 13º, Organização do ensino básico, podemos ler na alínea a) do ponto 3.: “Para o primeiro ciclo, o desenvolvimento da linguagem oral e a iniciação e progressivo domínio da leitura e da escrita, das noções essenciais da aritmética e do cálculo, do meio físico e social e das expressões plástica, dramática, musical e motora.”; logo a seguir, na alínea b), lemos: “Para o segundo ciclo, a formação humanística, artística, física e desportiva, científica e tecnológica e a educação motral e cívica,(...)”.
Seria agora o momento de analisar os ‘curricula’ deste grau de ensino a fim de poder avaliar com rigor aquilo que, na prática, significam estas palavras. No 1º ciclo mantém-se a presença da expressão dramática, durante os quatro anos de duração desse ciclo, mas exactamente como se encontrava nos anteriores ‘curricula’. É ao professor que cabe gerir aqueles conteúdos, as escolas não têm meios para contratar docentes especializados naquela área e, amargamente, teremos que concluir com um «tudo como dantes, quartel general em Abrantes...». Quanto ao 2º ciclo, o Teatro poderá aparecer como oferta de escola se na mesma escola houver no quadro de nomeação definitiva de docentes alguém que se disponha a assegurar a leccionação dessa disciplina. Parece que, desta forma, se desperdiçará irremediavelmente a oportunidade de “detectar e estimular aptidões” no domínio das artes. Os nossos alunos, na sua grande maioria, chegarão aos seus 12-13 anos de vida completamente alheios aos fenómenos estéticos e artísticos; o sistema educativo do qual fazem parte não soube, não pôde ou não quis dar a devida atenção a esta questão. A formação destas crianças é pobre, porque incompleta. A Escola parece, assim, surgir cada vez mais virada para uma lógica de mercado e não para a formação integral do indivíduo. Passemos à Subsecção II, Ensino secundário e vejamos o que diz a alínea c) do Artigo 15º, Objectivos do ensino secundário: “Desenvolver as competências necessárias à compreensão das manifestações culturais e estéticas e possibilitar o aperfeiçoamento da expressão artística;”. Como se poderá aperfeiçoar, questionamo-nos nós, aquilo que não se praticou antes?

A realidade é esta: também no 1º ciclo do ensino secundário o Teatro poderá surgir como oferta de escola; em termos de docência, a situação é exactamente a mesma que descrevemos para o 2º ciclo do ensino básico. A modalidade de leccionação é, porém, mais bizarra: nos 7º e 8º anos, os alunos que escolherem esta opção frequentá-la-ão durante uma parte do ano lectivo, na outra parte frequentarão outra opção; não existem programas emanados pelo Ministério da Educação e, no 9º ano, os alunos terão então, se assim o entenderem, a disciplina durante todo o ano lectivo; a carga horária da disciplina é manifestamente insuficiente: uma aula de duas horas, uma vez por semana. Este quadro é, de facto, grotesco. As expressões artísticas são, na verdade, tratadas como parentes pobres do sistema educativo. Cairão por terra, a nosso ver, as palavras que citámos no ínicio deste capítulo e que constavam da «Exposição de Motivos» que presidiam à formulação de uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo. Naquilo que diz respeito às expressões artísticas e à sua efectiva presença no nosso sistema educativo nada mudou. Curiosamente, uma instituição de ensino superior pública mantém há alguns anos uma Licenciatura em Estudos Teatrais com uma vertente, em termos de saídas profissionais, destinada ao ensino. A instituição tem nome, claro, chama-se Universidade de Évora. Dos alunos que já concluíram a referida Licenciatura contam-se pelos dedos de uma mão aqueles que se encontram a leccionar nas nossas escolas – quer do ensino básico, quer do ensino secundário. Por outro lado, e para concluir, refira-se que a presente Reforma curricular eliminou dos ‘curricula’ uma disciplina que existiu durante mais de uma década – Oficina de Expressão Dramática -, disciplina essa que foi leccionada em mais de duas dezenas de escolas a nível nacional e, na qual, o Ministério da Educação investiu em termos de equipamentos técnicos alguns milhares de, na altura, escudos. Essa disciplina nunca foi, tanto quanto sabemos, objecto de uma avaliação séria e rigorosa. No quadro da nova Reforma foi pura e simplesmente eliminada como se se tratasse de algo de somenos importância... Este é, pois, o estado em que as coisas estão.
3. CONCLUSÃO (ou não...) Numa das suas obras Peter Brook diz: “o teatro é, para aquele que o faz, um exercício permanente. Representar, aceitar o desafio do jogo, é, assim, aceitar melhorar-se através do prazer, o que faz do teatro um instrumento fantástico da educação. O aluno sentado na sala de aula, escutando, não está em situação que o leve a descobrir as suas potencialidades. Pode fazê-lo no desporto, mas isso não toca senão uma parte da sua personalidade.”. Depois destas palavras poderíamos dar por concluído este trabalho. Na verdade, pouco mais haverá a acrescentar quanto à importância que, achamos, o Teatro deve ter no nosso sistema de ensino. Insistimos, no entanto, na falha grave que é a sua ausência ou, se quisermos entendê-lo assim, na sua presença envergonhada. Não faz parte do âmbito de um trabalho académico propôr soluções, mais ainda sendo essas soluções do foro de uma política educativa. No entanto, consideramos que tratando-se de um trabalho para uma das disciplinas de um Mestrado em Educação Artística mal seria que não se questionasse a presença, ou não, do teatro no nosso sistema educativo. Não se vislumbra, pois, uma conclusão. Somos apenas uma voz “a clamar no deserto”, nada mais. Literalmente, um deserto cada vez mais árido de uma Escola cada vez mais inóspita quanto à criatividade.

1975, 1980, 1990...Quê?! Já chegámos ao século vinte e um?!...Pois foi.Aqui no Sudoeste deste velhíssimo continente somamos já umas valentes centúrias de História. Levámos ciclicamente braços aos outros mundos. Escanzelados braços em busca de sustento, levados pela miragem da mudança de vida e desses mundos trouxemos os mesmos braços, mais nutridos, mais tilintantes de pulseiras e relógios, prontos a erguer betão, destros no fumegar dos escapes e hábeis a promover romarias e feiras fartas em foguetório, comezaina e cantorias rascas. O braço chorudo do torna-viagem tornou-se um marco a indicar o caminho: quem não alomba, não anda de Mercedes-Benz. O mote estava dado. Não tens dinheiro e ninguém te respeita, nem te considera, nem ouve o que tens para dizer. Quem não sabe fazer dinheiro, não presta para nada. Quando saí daqui, da terrinha, ia de mão à frente-mão atrás, era um zé-ninguém, um pobretanas que nem o nome sabia assinar. Hoje aqui me tens em cada Agosto: olha a fatiota, o sotaque, o chiar dos pneus, o luzir dos anéis nos dedos. Olha a minha ‘maison’. Dou dinheiro para a nova igreja, para a procissão, dou algum para a Junta de Freguesia. Sou um benfeitor, a bem dizer eu sou o Progresso.A ascenção social centrou-se na capacidade de fazer dinheiro. Aqueles a quem um dia chamaram ‘progressistas’ cansaram-se, compraram ‘jeeps’ e um monte algures no Alentejo. Hoje em dia, debruçam-se, curiosos, sobre a terra, em licenças sabáticas, como avestruzes envergonhadas dessa sua nova condição. De resistentes passaram a desistentes. O país real – o da telenovela e futebol, o do centro comercial e arraial nem se apercebe da sua existência. Não lhes liga pêvas. Está mais preocupado com outras coisas.O país vive, finalmente, a duas velocidades: de um lado, os que estão bem na vida e têm os filhos no ensino privado, pagam e reclamam, assumindo o direito de que o cliente tem sempre razão; do outro, a massa anónima e ressabiada que invade os centros comerciais aos fins de semana, lê as gordas de um dos três diários desportivos nacionais, consome novelas ou ‘filmes de acção’ e anda lixada da vida ‘por causa dos atestados médicos que os sacanas dos profs. metem’. São os utentes do nosso Sistema de Ensino Público. Hão-de constituir-se em associação, depois em Federação e, logo em seguida, serão uma Confederação para que sejam admitidos à mesa das negociações de um conflito que será resolvido quando o bom-senso imperar. O actual Sistema Educativo vive de ‘fait-divers’. É um conflito permanente e insanável, feito da discussão de acções de guerrilha. O Presidente de um Conselho Executivo gasta horas a falar com uma Associação de Pais que se arroga a capacidade de discutir assuntos do foro pedagógico. O Conselho Pedagógico de uma Escola reserva lugares para alunos, pais e funcionários com direito a voto. Discutem-se colocações de professores, coisas corporativas. Contam-se tempos de serviço, habilitações, graduações, acções de formação. Coisas de funcionário cansado que vai riscando no calendário os dias que faltam para ficar em casa a tratar do canário.O cidadão comum, preocupado em garantir a subsistência, alarma-se e incomoda-se quando não encontra sítio onde albergar as crias, passado que foi o período estival. Tem que ir trabalhar, ganhar a vida e nem o infantário, nem o adolescentário lhe mostram sinais de abrir as portas. Fica à espera, recorre a expedientes vários e nem reclama. Tudo se há-de compor. A Escola abriu. Ainda bem. Está tudo a funcionar no melhor dos mundos possíveis. Candidamente entregamos os nossos rebentos nas mãos acolhedoras da Escola. Estuda para o teste. Tens teste amanhã. Vou pôr-te na explicação. Podes passar de ano ‘cortado’ a quantas disciplinas?...O nosso mancebo sorri. Há-de andar na escola até ter, pelo menos, 18 anos. Dela – Escola – não espera grande coisa. Há outros caminhos. Ele sabe que sim. Se alguém lhe disser que a Escola visa, entre outras coisas, contribuir para a sua realização através do pleno desenvolvimento da sua personalidade, da formação do seu carácter e da sua cidadania, dando-lhe uma preparação para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos e que também lhe proporcionará um equilibrado desenvolvimento físico, o nosso mancebo há-de achar que estamos a gozar com ele. Estamos na Europa civilizada. Hoje são vésperas de 2005. Ainda bem que não vivemos no hemisfério Sul. Aqui, estamos com mais de 8 séculos de história no nosso canto do Sudoeste deste velho continente. Tiveste as aulas todas? Tens testes marcados? Sempre vão fazer exames no 9º ano?...No espelho retrovisor do nosso carro assoma uma cara que, sem nos responder, trauteia uma canção que lhe escorre pelos auscultadores do ‘walkman’.

